Literatura e pensamento crítico no século XXI


Quando eu era criança, meus melhores amigos eram os livros. Lembro de passar horas sem fim na biblioteca do meu pai, folheando livros empoeirados com olhos ávidos de curiosidade. Cada livro era como uma nova aventura, um mundo por ser descoberto. Quem seria aquela pessoa cujo nome a capa desbotada estampava? O que a teria levado a escrever aquele livro? E qual seriam sua história e estória? Não eram apenas livros, mas muito mais do que isso. Para o observador externo, o leitor permanece imóvel por horas trancado em algum quarto bolorento amontoado de livros qual uma traça. Mas para o leitor ou leitora, a leitura é uma atividade extremamente estimuladora tal como tocar um instrumento ou se dedicar à prática de um esporte. Apenas que com a leitura não se afina um instrumento para que produza notas musicais, nem se pratica movimentos à perfeição milimétrica, mas se expande a imaginação além dos horizontes e se solidifica o pensamento crítico. Parece paradoxal, não? Desenvolver a imaginação e o pensamento crítico ao mesmo tempo? Pois é, a leitura, e a literatura em especial, é cheia de interessantes paradoxos.

Minha intenção aqui não é sufocar o leitor com nostalgia, muito menos esgotar o assunto. Pelo contrário. Esse blog é formado por pequenas provocações intelectuais de um leitor para outros leitores. E quanto à nostalgia, bem, ela é uma forma eficaz de conquistar o leitor. Mas minha relação com a leitura e, em especial com a literatura, não se encerram no passado. Pelo contrário, ainda hoje passear comigo perto de uma livraria é um sério risco de pôr fim ali ao passeio. Pois os livros continuam a exercer o mesmo fascínio sobre mim. Cada livro é como uma porta de mil possibilidades que transcendem tempo e espaço.

E muito se engana quem pensa que o que se ganha ao ler é meramente conhecimento. Do contrário, a invenção do jornal, da enciclopédia e, mais recentemente, da internet teriam posto fim ao ato quase inconveniente da leitura por prazer. O que se ganha é o poder de viajar sem se mover fisicamente, de levar sua mente aonde você quiser. Mas, ao mesmo tempo, é muito importante observar que a leitura de livros é um ato intermitente. Ou seja, ao contrário de um conto, ao se ler um livro geralmente há muitas pausas na leitura. E tais pausas são convites espontâneos à reflexão. Reflete-se à princípio sobre o mundo escrito, sobre a estória ou história que estamos a ler, mas não demora e nossas reflexões nos levam para além: a questionar o mundo em que vivemos. E talvez por isso a leitura e, em especial a literatura, seja tão temida por aquele 1% que detém o 90% de tudo.

A leitura também é usada como forma de dominação, infelizmente. O monopólio do conhecimento é uma chaga que existe desde os tempos mitológicos. Felizmente, há sempre alguns Prometeus que decidem se sublevar, compartilhando o conhecimento, e alguns Spartacus que decidem romper com a escravidão física e mental. Nessa guerra infinda entre dominadores e dominados, a leitura já foi utilizada inclusive para tentar sufocar a literatura não-escrita aborígene. E a despeito do quase extermínio de tais povos e suas culturas, ainda persistem hoje, assim como ainda existem seus mitos e literatura oral.

Nessa luta incessante, a tecnologia ocupa um capítulo a parte. O avanço tecnológico tem causado revoluções na reprodutibilidade e na acessibilidade de textos. Até mesmo textos não escritos, tais como o cinema, por exemplo, galgaram status similar ao da literatura convencional. E o próprio blog que utilizo agora para me comunicar com você se insere nesse processo. As redes sociais e os smartphones têm acelerado o processo de produção, consumo e reprodução da informação. E, nesse sentido, há um paradoxo em relação à leitura. Se, por um lado, torna-se mais fácil ler, lê-se em um tempo frenético que carece oportunidade de reflexão. A louvável exceção, é claro, seriam os blogs e as livrarias digitais (Amazon e Kindle, por exemplo).

Especificamente em relação ao livro digital - gratuito ou não - e as plataformas pagas do estilo Kindle há um processo muito interessante que permite a publicação de escritores iniciantes. Pois sim, chega um momento em que a imaginação e o poder crítico desenvolvidos ao longo de anos se combinam para produzir uma nova obra. Mas voltando à questão da publicação, tradicionalmente ela é muito difícil. De fato, a expectativa de publicação é um trauma na vida de um escritor pois ela frequentemente acompanha despesas de enviar seu material a editoras e as rejeições das mesmas editoras. Ao invés de queimar seus manuscritos ou de degredá-los ao exílio da escrivaninha, hoje se pode publicar os livros rejeitados através das plataformas digitais.

E, diga-se de passagem, livros são rejeitados não por uma questão de qualidade. Mas talvez porque as editoras estejam interessadas em auferir lucro com a venda de livros, considerando assim cada manuscrito um risco. Nesse sentido, há um paradoxo um tanto quanto irônico já que se cria uma obra nova, algo que em algum sentido é novo e diferente do que já foi criado. Por outro lado, as editoras querem apostar naquilo em que há chance de venda, semelhante ao que já foi criado antes. Confuso, não? Além disso, há muitas outras explicações para esse status quo. Uma, por exemplo, é de que ainda hoje, mesmo com a redução do analfabetismo formal e com as novas possibilidades abertas pela internet, muito pouco se lê. Ou, dito de outra forma, muito pouco se lê com qualidade: checando informações, parando para refletir e estabelecer conexões mentais com outras coisas lidas antes. Simplesmente não se tem tempo para isso entre trabalho(s), estudo(s), família, cuidar do cachorro e "ler" as 3000 novas mensagens daquele grupo do WhatsApp...


Palavras-chave: leitura, literatura, literacia, século XXI, século 21, pensamento crítico, imaginação.

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