Metáfora do boi e do cabresto


3 músicas: 2 brasileiras e 1 argentina. O que elas têm em comum? Além de serem latino-americanas, todas têm a metáfora do boi. Que metáfora? Bem, vamos por partes. Comecemos pela música mais recente e talvez mais conhecida aqui no Brasil. Admirável Gado Novo. O clip original é muito interessante. Para quem nunca viu ou deseja rever, está logo abaixo.

Apesar da imagem tremida em VHS, é surreal ver Zé Ramalho cantando "Êh, ô, ô, vida de gado/ Povo marcado/ Êh, povo feliz!" em meio aos transeuntes da metrópole. Parece que Zé está a tanger as pessoas. De fato, interessante é a metáfora que Zé Ramalho usa para simbolizar a subjugação e a conformidade do povo: a massa de bois, o gado marcado. Mas para além do significado mais óbvio, não se pode esquecer o contexto de ditadura que o Brasil vivia. Isso fica mais claro na estrofe abaixo:
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal

"Lá fora" pode ser uma referência a fora do Brasil, ao exílio. Além disso, "vigilância" é uma palavra bem sugestiva do contexto de ditadura. "Os homens a publicam no jornal" parece ser uma referência à censura que perdurou de 1968 até 1978, justamente um ano antes dessa música ser lançada. Dessa forma, Admirável Gado Novo tem um tom bastante ácido, provocador, perante uma cultura de massa e uma massa subjugada ainda pelos grilhões da ditadura. Nesse sentido, o título da música faz referência ao romance distópico Admirável Mundo Novo.

Passemos, então, à segunda música, Disparada, composição de Geraldo Vandré e interpretada por Jair Rodrigues. Essa música, de 1966, utiliza a mesma metáfora do boi, mas de maneira diferente. Ela começa por fazer referência ao êxodo rural em "Eu venho lá do sertão/ e posso não lhe agradar". 

A seguir, "aprendi a dizer não" marca o tom de rebeldia da música já que "tudo estava fora de lugar/ e eu vivo para consertar". Depois, a música cresce, ou melhor, dispara como as patas de um cavalo. O eu lírico diz que "na boiada já fui boi/ mas um dia me montei", como um peão que vira capataz, um "lugar-tenente" seduzido pelo sonho de virar rei. O problema era que "gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente". A música atinge seu clímax com a resolução do problema: "agora sou cavaleiro/ laço firme e braço forte/ num reino que não tem rei". Nesse sentido, a música denota ainda a possibilidade de se dizer não, ou seja, justamente o contrário do tema de conformidade questionado em Admirável Gado Novo.

Outra música bastante interessante é Leña Que Arde Sin Humo, de Atahualpa Yupanqui. Essa música é uma milonga, o que em si já faz parte da temática do cavaleiro e do boi. Mas além disso, há a referência a carreta, "cosa que en el mundo/ va de arrastro y a'onde la llevan". Puxada por bois, a carreta segue num passo lento de forma que o carreteiro ou carrero é: 
Hombre que a paso de buey
Se recorre la existencia,
Y al mismo paso tardido
Quiere, sufre, vive y piensa
A massa de bois e o cabresto parecem compor uma metáfora intrigante para o caudilhismo latino-americano. Esse caudilhismo que teve origem na monocultura exportadora com trabalho forçado, matando nativos, negros e mestiços como bois, faz-se sentir em nosso continente muito além das cercas do latifúndio. Pronto, já plantei a sementinha da discórdia...o resto é com você.

Palavras-chave: boi, cabresto, admirável gado novo, disparada, leña que arde sin humo





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