História oficial e histórias "anônimas"
Estive alguns dias em Cuiabá e tive a oportunidade de visitar um museu bastante interessante, o Museu de Pré-História Casa Dom Aquino. Fui muito bem atendido lá e tive a oportunidade de aprender um pouco mais sobre fósseis de diversas épocas geológicas e ferramentas de pedra encontradas no estado de Mato Grosso. Há, inclusive parte de um esqueleto de uma preguiça gigante e de um dinossauro (infelizmente, o restante da preguiça e do dinossauro estava no Museu Nacional, aquele que pegou fogo). Mas o que me chamou a atenção foi a última sala que visitamos, onde há dois painéis: um falando sobre a história de Joaquim Murtinho (foi Senador e Ministro da Fazenda) e outro falando sobre a história de Dom Aquino (foi governador de Mato Grosso e Arcebispo de Cuiabá). Para minha surpresa, descobri que o prédio do Museu fora a residência da família Murtinho, a qual detinha muitas terras na região. Por ironia, a sala imediatamente anterior contém artefatos de alguns povos indígenas de Mato Grosso. Fiquei pensando em quem realmente eram os donos daquela terra...
Fiquei sabendo também que a terra (e a casa) fora posteriormente vendida para a família Aquino. Ou seja, aquela casa colonial havia abrigado dois membros da elite local e que chegaram a ter importância nacional. Porém, ao invés de me sentir impressionado, notei que abaixo do painel sobre Dom Aquino havia vários artefatos expostos em uma caixa de vidro. Ao me aproximar, li que foram encontrados naquela propriedade e que pertenceram a escravos africanos. Ao contrário dos painéis de Murtinho e Aquino, indivíduos que fazem parte da História oficial, escrita com H maiúsculo com narrativas na tradição burguesa sobre "grandes" indivíduos, os artefatos indígenas e os artefatos dos escravos africanos eram anônimos, de possível uso coletivo, e compõem histórias anônimas, de povos que foram vencidos.
Lembrei do livro Aviso de Incêndio, de Michael Löwy, sobre as Teses da História, de Walter Benjamin. Diz Benjamin na Tese VII que "os dominantes de turno são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram. A identificação afetiva com o vencedor ocorre, portanto, sempre, em proveito dos vencedores de turno. [...] Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais" (LÖWY, 2005, p.70).
A justaposição dos artefatos anônimos com os painéis de indivíduos considerados ilustres me fez lembrar dessa alegoria de cortejo, em especial os artefatos pertencentes aos escravos por estarem posicionados abaixo do painel de Aquino. Podemos até pensar todo o edifício do Museu, enquanto casa colonial, como um bem cultural, uma presa, por cima da terra, a qual um dia pertenceu e foi tomada de povos indígenas. Figurativamente também, a casa jaz sobre os vencidos da terra.
Como bem aponta Löwy, a alegoria do cortejo evoca o exército romano desfilando com os espólios roubados do templo de Jerusalém, após derrotar a revolta na Judéia (73). Ainda hoje, os exércitos imperialistas fazem desfiles da "vitória" após o retorno de suas guerras de rapina.
Mas é importante lembrar que herdeiros dos povos vencidos e espoliados ainda existem. Não são apenas os indígenas, os negros e pardos, os quilombolas, mas todos aqueles que se identificam com os vencidos de outrora - os que lutaram mas não conseguiram - e que não pertençam ao grupo dos vencedores de hoje. Se, como diz Benjamin, os vencedores de hoje se identificam com os vencedores do passado, emulando-os e recebendo a herança patrimonial e até "cultural", aqueles que hoje estão "por baixo" têm o imperativo de se identificarem com todxs aquelxs que lutaram antes e foram vencidos. Há diversas formas de fazer isso. Uma delas é desafiar a versão oficial da História em favor das diferentes histórias, ou seja, ler a história a contra-pelo. Um exemplo disso é o que o mural de Diego Rivera, pintado no palácio colonial que foi morada de Cortéz, nos permite fazer. Ao invés de glorificar o indivíduo Cortéz, Rivera o retrata como parte da empreitada colonial, sendo ambos (ele e a empreitada) sustentados pela escravidão, estupro e genocídio dos povos indígenas.
Palavras-chave: Memória; Walter Benjamin; Vencidos; Rememoração
Bibliografia
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
Fiquei sabendo também que a terra (e a casa) fora posteriormente vendida para a família Aquino. Ou seja, aquela casa colonial havia abrigado dois membros da elite local e que chegaram a ter importância nacional. Porém, ao invés de me sentir impressionado, notei que abaixo do painel sobre Dom Aquino havia vários artefatos expostos em uma caixa de vidro. Ao me aproximar, li que foram encontrados naquela propriedade e que pertenceram a escravos africanos. Ao contrário dos painéis de Murtinho e Aquino, indivíduos que fazem parte da História oficial, escrita com H maiúsculo com narrativas na tradição burguesa sobre "grandes" indivíduos, os artefatos indígenas e os artefatos dos escravos africanos eram anônimos, de possível uso coletivo, e compõem histórias anônimas, de povos que foram vencidos.
Lembrei do livro Aviso de Incêndio, de Michael Löwy, sobre as Teses da História, de Walter Benjamin. Diz Benjamin na Tese VII que "os dominantes de turno são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram. A identificação afetiva com o vencedor ocorre, portanto, sempre, em proveito dos vencedores de turno. [...] Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais" (LÖWY, 2005, p.70).
A justaposição dos artefatos anônimos com os painéis de indivíduos considerados ilustres me fez lembrar dessa alegoria de cortejo, em especial os artefatos pertencentes aos escravos por estarem posicionados abaixo do painel de Aquino. Podemos até pensar todo o edifício do Museu, enquanto casa colonial, como um bem cultural, uma presa, por cima da terra, a qual um dia pertenceu e foi tomada de povos indígenas. Figurativamente também, a casa jaz sobre os vencidos da terra.
Como bem aponta Löwy, a alegoria do cortejo evoca o exército romano desfilando com os espólios roubados do templo de Jerusalém, após derrotar a revolta na Judéia (73). Ainda hoje, os exércitos imperialistas fazem desfiles da "vitória" após o retorno de suas guerras de rapina.
Mas é importante lembrar que herdeiros dos povos vencidos e espoliados ainda existem. Não são apenas os indígenas, os negros e pardos, os quilombolas, mas todos aqueles que se identificam com os vencidos de outrora - os que lutaram mas não conseguiram - e que não pertençam ao grupo dos vencedores de hoje. Se, como diz Benjamin, os vencedores de hoje se identificam com os vencedores do passado, emulando-os e recebendo a herança patrimonial e até "cultural", aqueles que hoje estão "por baixo" têm o imperativo de se identificarem com todxs aquelxs que lutaram antes e foram vencidos. Há diversas formas de fazer isso. Uma delas é desafiar a versão oficial da História em favor das diferentes histórias, ou seja, ler a história a contra-pelo. Um exemplo disso é o que o mural de Diego Rivera, pintado no palácio colonial que foi morada de Cortéz, nos permite fazer. Ao invés de glorificar o indivíduo Cortéz, Rivera o retrata como parte da empreitada colonial, sendo ambos (ele e a empreitada) sustentados pela escravidão, estupro e genocídio dos povos indígenas.
Palavras-chave: Memória; Walter Benjamin; Vencidos; Rememoração
Bibliografia
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
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