Reduzir custos para aumentar lucros, mesmo que custem vidas


O rompimento da barragem em Mariana, em 2015, foi retratado por muitos jornais como uma "tragédia", ou um dos piores "acidentes" da história no Brasil. Engenheiros e advogados alertaram para a necessidade de maior fiscalização e de uma legislação mais rigorosa para a construção de barragens para fins de mineração. Porém, a poeira baixou e, pouco tempo depois, só se falava novamente sobre as ações (em alta) da Vale. Agora, em 2019, após o desastre ainda maior em Brumadinho, fico me perguntando o quê de "acidental" realmente houve nos dois eventos...

Tenho lido muitos artigos a respeito do rompimento da barragem em Brumadinho e o tom em muitas matérias é de que esse é o canto do galo, o "eu te avisei" que ia dar M... Para além da hipocrisia, à medida que temos acesso a certas informações, fica claro que muito pouco foi feito concretamente para exigir das corporações mineradoras melhores projetos, mais manutenção, treinamento da população, entre outros. Aliás, a questão vai além disso. Segundo matéria do jornal El Pais¹, o Brasil tem 839 barreiras de mineração, muitas delas que colocam diretamente em risco a vida dos habitantes de cidades próximas ou que colocam em risco biomas inteiros. Em Corumbá (MS), por exemplo, há 16 barragens e uma delas é considerada de "alto risco". Somente a barragem de Gregório já seria capaz de destruir completamente o Pantanal, sem falar no número de vítimas.

A questão é: precisamos realmente de tantas barragens? Quem ganha realmente com elas? E não me venham com o velho discurso burguês da geração de empregos, pois o obituário de Brumadinho está cheio de funcionários da Vale. Na minha opinião, Mariana e Brumadinho não devem ser entendidos como "acidentes", mas como "falhas sistêmicas". Explico: acidente seria causado por uma somatória de fatores, sem alguém a ser responsabilizado claramente e sem haver interesses econômicos por trás.  Mas no caso das barragens, parece-me que as grandes corporações mineradoras estão jogando com a probabilidade.

Por exemplo, uma seguradora conta que é muito pouco provável que vários dos seus clientes morram no mesmo dia, conseguindo assim pagar o seguro de vida a quem morre a partir das mensalidades pagas pelos demais segurados, ainda vivos. No caso das grandes corporações mineradoras, o raciocínio parece ser de que é muito pouco provável que várias barragens rompam no mesmo ano ou mesmo em anos consecutivos. É claro que o preço das ações caem e a empresa XYZ é multada, mas ela compensa isso nos anos seguintes com recordes de produtividade, cortes de custos e uma nova campanha de marketing. Enquanto isso, o lobby das mineradoras engaveta todo projeto de lei contrário a seus interesses¬. Como aponta outra matéria de El País², as ações da Vale haviam subido 500% entre 2015 e 2019.

Outro argumento que dá suporte à ideia de "falha sistêmica" é o próprio conceito microeconômico de externalidades. De acordo com Ricardo Ernesto³, "aos efeitos de uma atividade econômica sobre terceiros (aqueles que nada têm a ver com o que a empresa faz, como o morador que perdeu a casa e demais bens por causa da lama), os economistas costumam chamar de externalidades negativas. Neste caso, o vazamento da lama é uma externalidade negativa pela qual a empresa terá que assumir todos os custos de reparação". Infelizmente, não foi o que aconteceu em Mariana. Será que vai ser diferente com Brumadinho?

Apesar da Vale ter sido multada em 250 milhões de reais (soma irrisória) pelo Ibama e ter tido bens retidos no valor de 11 bilhões pela justiça mineira para reparações, vale lembrar (desculpe o trocadilho) que o patrimônio dessa corporação é de 304,9 bilhões de reais. Somente o faturamento em 2017 foi de 100 bilhões e os lucros em 2017 foram 17 bilhões de reais*. Então, na matemática fúnebre, façam as contas.

Se você ainda não está convencido de meu argumento de "falha sistêmica", pois fique sabendo que, segundo o Uol Notícias**, a Vale cortou despesas com segurança e saúde em 44% entre 2015 e 2016, a nível internacional. E, por outro lado, isso aconteceu no mesmo ano em que a Vale reverteu o prejuízo de 2015 e atingiu um lucro de 13 bilhões de dólares (cerca de 44 bilhões de reais na época).
Resumindo, menos custos = mais lucros. E o que está escondido nessa equação é justamente a destruição de biomas e de vidas.

Palavras-chave: Mariana; Brumadinho; Mineradoras; Capitalismo

Links
¹Matéria do El pais, "A rotina dos vizinhos das barragens à espera de uma próxima tragédia".
¬Matéria do Terra, "Câmara arquivará 22 projetos de lei sobre mineração".
²Matéria do El pais, "Vale derrete no mercado e custo da tragédia deve subir com ações contra a empresa".
³Matéria do site Biomassa e Energia, "Atividades econômicas e externalidades negativas".
*Dados retirados da página sobre a Vale na Wikipedia.
**Matéria do Uol Notícias, "Após tragédia em Mariana, Vale reduziu em 44% os gastos em segurança"
***A arte que ilustra essa postagem se chama "a lei geral de acumulação capitalista" e é de autoria do grupo "Capital Drawing Group", que ilustra passagens de O Capital.

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