Os ritos corporais entre os Nacirema
É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs a si mesmo.
Horace Miner
O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que os diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de surpreender-se, mesmo em face dos costumes mais exóticos.
De fato, embora nem todas as combinações de comportamento logicamente possíveis tenham sido descobertas em algumas partes do mundo, o antropólogo pode suspeitar que elas devam existir em alguma tribo ainda não descrita. Este aspecto foi expresso, com relação à organização clânica, por Murdock(1949-1971). Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como um exemplo dos extremos que pode atingir o comportamento humano.
Foi o professor Linton, há vinte anos atrás, o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o ritual dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente compreendida até hoje. Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e Tarahumare do México e os Carib e Arwak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem a sua nação. Ele é, por outro lado, conhecido por sua façanhas de força - ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po-To-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residia o Espírito da Verdade.
A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evoluiu em um rico habitat natural. Apesar do povo dedicar muito de seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos destes trabalhos e uma considerável porção do dia são dispensados às atividades rituais. O foco dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde assomam como o interesse dominante no etnos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a ele associados são singulares.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é sublinhar tais características através do uso de poderosas influências rituais e cerimoniais. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a esse propósito. Os indivíduos mais poderosos da sociedade têm muitos santuários em suas casas. De fato, a alusão à opulência de uma casa é feita, muito freqüentemente, em termos do número de centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmaras de culto têm as paredes cobertas da mais rica pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas aplicando placas de cerâmica às paredes de seu santuário.
Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, são cerimônias privadas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, nesse caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar santuários e obter descrições detalhadas dos rituais.
O ponto focal do santuário é um caixa ou cofre embutido na parede. Nesse cofre, são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita poder prescindir. Tais preparados são obtidos através de uma série de profissionais especializados, sendo que os mais poderosos são os médicos-feiticeiros. O auxílio de tais médicos deve ser recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médicos-feiticeiros não fornecem a seus clientes as poções de cura, só decidem quais devam ser seus ingredientes e, então, escrevem-nos em uma linguagem antiga e secreta. Essa escrita é entendida apenas pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dádiva, preparam o encantamento necessário.
Os Nacirema não se desfazem do encantamento após o uso, mas guardam-no na caixa-de-encantamentos do santuário doméstico. Como essas substâncias mágicas são específicas para certas doenças, as quais são muitas(reais ou imaginárias), as caixas-de-encantamentos estão, geralmente, a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas finalidades específicas e temem fazer uso deles novamente. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a esse aspecto, só podemos concluir pela crença na idéia de que sua mera presença na caixa-de-encantamentos em frente a qual são executados os rituais corporais, protegerá, de alguma forma, o adorador.
Abaixo da caixa-de-encantamentos, existe uma pequena pia batismal. Todos os dias, cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina sua fronte perante a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes variedades de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de ablução. As águas sagradas vêm do Templo de Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por sagrados homens da boca. Os Nacirema tem um horror quase patológico, e ao mesmo tempo fascínio, com relação à cavidade bucal. Acreditam que o estado da cavidade bucal exerce influência sobrenatural em todas as relações sociais. Se não fosse pelos rituais bucais, acreditam que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas se enrigeceriam, seus amigos os abandonariam e namorados os rejeitariam. Acreditam, pois, na existência de estreita relação entre as características orais e morais: existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças baseada na crença de aprimoramento da fibra moral.
O ritual de corpo executado por todo Nacirema diariamente, inclui um rito bucal. Justamente por serem tão escrupulosos no cuidado bucal este rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não-iniciado, o qual com certeza classificará como revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós mágicos. Então, movimenta-se o feixe de cerdas em série de gestos altamente formalizada.
Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano, pelo menos. Tais profissionais colecionam instrumentos, tais como brocas, furadeiras, sondas e agulhões. O uso desses objetos no exorcismo de demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote da boca abre a boca do cliente e, usando os intrumentos supracitados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nas cavidades, são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpados para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito de tamanho empenho é tolher a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pela freqüência dos nativos, ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem a degenerar.
Esperamos que, quando for realizado um estudo completo dos Nacirema, haja um meticuloso inquérito sobre a estrutura de personalidade desse povo. Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-de-boca, ao enfiar um furador em um nervo exposto, para se suspeitar de uma certa dose de sadismo. Se isso puder ser comprovado, teremos um modelo interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. Foi a tendências assim que o professor Linton se referiu na discussão de uma parte específica do rito corporal que é desempenhada exclusivamente por homens. Esta parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante o mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência é compensado em barbaridade. Como parte da cerimônia, as mulheres têm suas cabeças assadas em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.
Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente, chamado de latipso. Existente em cada comunidade de certo porte, é para lá que os muito doentes vão. Estas cerimônias envolvem não penas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucas especiais, movimenta-se serenamente pelas câmaras do templo.
As cerimônias do latipso são tão cruéis que é de se surpreender que boa parte dos internados se recupere. Sabe-se que crianças pequenas, com uma doutrinação ainda incompleta, resistem à tentativa de levá-los aos templo porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disso, adultos doentes não apenas querem, mas anseiam por sofrer prolongados rituais de purificação. Isto é, quando possuem recursos para tanto, é claro, sendo completamente irrelevantes para o acesso ao templo quão doente esteja o suplicante ou o grau da emergência. Os guardiães de templos não admitirão um cliente se ele não poder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ser admitido, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão que o neófito abandone o local sem realizar mais uma doação.
Inicialmente, o suplicante é despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo sobre o corpo podem resultar traumas psicológicos. Um homem cuja própria esposa nunca o tenha visto em uma ato excretor acha-se, subitamente, nu e sendo auxilidado por uma vestal, enquanto executa suas funções naturais em um receptáculo sagrado. Esse tipo de tratamento cerimonial é necessário para a análise das excretas por um adivinho, de modo a analisar o curso e a natureza da enfermidade. Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nús submetidos ao escrutínio, manipulação e aguilhoadas dos médicos-feiticeiros.
Poucos clientes do latipso estão em condições de fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias aqui, assim como os ritos bucais, envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais despertam seus miseráveis clientes e fazem-nos rolar de dor enquanto executam abluções, com os típicos movimentos formais em que essas virgens são treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou os forçam a engolir substâncias supostamente curativas. De tempos em tempos, o médico-feiticeiro vê seus clientes e espeta agulhas mágicas em suas carnes. A possibilidade de que tais cerimônias sejam ineficazes na cura e, inclusive, possam matar o neófito, não diminue a fé das pessoas no latipso e nos médicos-feiticeiros.
Resta, ainda, um outro tipo de profissional, conhecido como o ouvinte. Esse doutor-bruxo tem o poder de exorcisar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os adultos enfeiticem seus próprios filhos; particularmente, teme-se que ao serem ensinados sobre os ritos corporais secretos, as crianças sejam amaldiçoadas. A contra-mágica do doutor-bruxo é inusitada por sua carência de aspectos rituais. O paciente simplesmente conta ao ouvinte todos os seus problemas e temores, principiando pelas dificuldades iniciais que consegue lembrar. A memória demonstrada pelos Nacirema em tais sessões é realmente notável. Não é incomum um paciente deplorar a rejeição que sentiu, ainda quando bebê, ao ser desmamado; outros chegam a reportar traumas originários do próprio nascimento.
Como conclusão, deve-se fazer referências a certas práticas que têm base na estética nativa, mas que decorrem da aversão perversiva ao corpo e suas funções naturais. Existem jejuns rituais para tornar magras as pessoas gordas, assim como banquetes cerimoniais para engordar pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres, ou então para reduzi-los de tamanho. A insatisfação geral com as proporções dos seios é simbolizada no fato de a forma adorada estar fisicamente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas com um desenvolvimento hipermamário, são tão idolatradas que podem garantir seu futuro simplesmente indo de cidade a cidade para exibir seus seios em troca de uma taxa.
Já fizemos referências ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotineiras e secretas. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu, enquanto assunto, e programável, enquanto atividade. Sao feitos tremendos esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas diversas ou pela limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é, na realidade, pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de modo a esconder seu estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres prefere não amamentar seus pequenos.
Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser esse povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs a si mesmo. Mas até costumes tão exóticos quanto os aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo destacado por Malinowski:
"Olhando de longe, de nossos altos postos de segurança na civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem seu poder e orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o fez, suas dificuldades práticas, nem poderia o homem ter avançado aos estágios mais altos da civilização".
AK Romney e PL De Vore. 1973. You and others: readings in introductory anthropology. Cambridge. p.72-76. Tradução para utilização na UFSC de Selma Erlich. Adaptação e correção ortográfica de Olegario da Costa.
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